1 de novembro de 2013

Em retalhos

            Só tenho visto corações partidos aos montes e o meu é um deles, Zé. Misturado a outros tantos cacos e ao cheiro de rum barato. E ao cheiro do sangue que escorre da mão que quebrou o copo. Eu os vejo andando alheios ao mundo, amargos. Não se pode vê-los se não estiver, também, quebrado. Não queria ser um deles, não queria estar aqui. Suas mentes vazias ecoam tantos barulhos. Me tira desse lugar, Zé. Toma essa caixa de ácido e joga no ralo, pelo mesmo que escorreu a minha coragem. Me sopra, porque eu sinto um queimar que começa na ponta dos dedos e parece uma garra em volta da minha garganta. Me joga embaixo d'um chuveiro frio, pra cessar essa febre que me sufoca. Não deixa me enlaçarem naquela camisa. Me leva embora, guarda meu segredo. Não conta que eu me arrependi depois do fósforo já aceso. Me compra uma margarida, prende ela aos meus cabelos.

And if you're in love, then you are the lucky one
'cause most of us are bitter over someone.
Setting fire to our insides for fun
To distract our hearts from ever missing them.
                                                                                                                            Youth - Daughter 

8 de outubro de 2013

Das coisas findas

            
          Os últimos rodopios dos acordes daquele bolero antigo já se foram, juntos com o toca-fitas e o carro que só cheirava a rum e gasolina. A cadeira de balanço foi doada, sabe-se lá com que ritmo tem balançado. Da Velha espreguiçadeira só ficaram as muitas preguiças acumuladas de domingos ensolarados. Já se foram tantos Natais, fogueiras de São João nunca mais se queimaram. A casa não saiu do lugar, mas também foi deixada, hoje é habitada apenas pela poeira vil, encrostada. Já secaram-se todas as lágrimas. E lá se foi, caminhava lento, virando à esquina da vida. Só quem ficou foi a saudade que transita silenciosamente entre os cômodos vazios, assoviando a chamar o papagaio velho que faz tempo morreu de desgosto.


You've been dead six years now, 
but sometimes it feels like more. 
And I'm old, I'm old..
Dear John Letters - Monument Valley

30 de junho de 2013

Lâmina fria, sangue quente

- Se você continuar fazendo isso, vai me perder ainda antes do que imagina.
     Améllie sentou-se, tonta. E triste. Dolorosamente triste. E o que poderia dizer? Só de ouvir aquilo, era como se já tivesse perdido. Aquelas palavras cortavam como lâminas de aço. 
     E perdeu, ainda antes do que imaginava. Veio como um vendaval, varrendo seus sentidos, varrendo sua sanidade. Numa manhã cinza e fria. Mas como menina teimosa que era, não se deixou derrubar. Correu pela avenida lotada, trânsito confuso, gritava chamando um táxi. Sentou-se na porta da casa dela, a chuva caía. E só esperou. E esperou. Depois de minutos que pareceram eras, ela veio. Droga, estava linda. A Outra não a chamou para entrar, apenas saiu caminhando à sua frente. Era a via crucis. Pararam numa rua qualquer e ali Améllie desabou. Não conseguia sustentar aquele olhar frio, desatou a falar. O que sentia, o que doía, o que queria. As palavras saíam emboladas, meio bêbadas, lágrimas rolavam como cachoeiras. Não era ouvida, a frieza gelava-lhe os ossos. Queria gritar. Por um segundo, a Outra pareceu ouvir. Por um segundo, parecia que a tempestade estava passando.  Améllie, então, pegou coração e bolsa na mão e se foi. Um calor mínimo ainda ardia dentro dela, uma fagulha, eu diria. Porém, não demorou a ventar forte novamente, e a fagulha se apagou. O vento era cortante, empurrando-a para o abismo das coisas acabadas, mas ainda assim ela resistiu. E de novo aquela avenida lotada, motos entrecortavam zunindo. Dessa vez levou uma pequena jóia, ela a chamou para dentro. Améllie ajoelhou-se aos seus pés e chorou, implorou, lamentou. No final, abraçaram-se. Não estava resolvido ainda, não estava consertado, mas a fagulha de esperança se reacendia. 
     Já era madrugada, ficou ali ouvindo-a dormir, porque no sono ela era paz, no sono ela não se esgueirava para longe. Podia ouvi-la respirando. Embora não tivesse ouvido um eu te amo, o respirar calmo e compassado soava aos seus ouvidos como um. Então ela estava dormindo, mas era Améllie quem estava acordada sonhando. Não sabia muito o que fazer, só sabia que a amava intensamente. Aquilo parecia estar tatuado por dentro da  sua pele. E nunca seria apagado. Mil intempéries não bastariam.


I know exactly what you're thinking, you won't say it now
But in your heart it's loud:
Oh no, my feelings are more important than yours.
Oh, drop dead, I don't care, I won't worry.
(...)
Sweetheart, your feelings are more important, of course.
                      Razorblade - The Strokes


6 de junho de 2013

Let me hold your hand

         

              Ainda que bombas explodam, que prédios desabem, ainda que o chão suma e o ar acabe, eu não desviarei os meus olhos dos seus. Ainda que o céu fique vermelho e a nossa volta se instale o caos, ainda que multidões nos cerquem com insultos, bradando sua ira, eles não serão capazes de nos atingir. Ainda que tsunamis inundem e furacões destruam, ainda que agonizando o meu coração pare de bater e meus pulmões parem de respirar e sinapses parem de acontecer, o nosso amor estará intacto. Vem, me deixa segurar sua mão. Chegue mais perto de mim, vou te abraçar agora. E então, que venham mil fins. 

                                     Darling you're with me, always around me
                            Only love, only love
                                      Darling I feel you, under my body
                                 Only love, only love
                                                              Only Love - Ben Howard

22 de março de 2013

Broken Crown



             O que é que há por trás do sorriso da rainha? E por que às vezes ela sorri com a boca, mas não com os olhos? Por que esconde os olhos a rainha? Atrás das lentes, atrás das mãos frias. O que se passa na cabeça da rainha? Por que chora? Do que sente falta? Por que ou por quem ela bebe? Por quem ela espera sentada? É de ouro esse trono ou é de lata? É tristeza por trás desse sorriso, rainha? Essa sujeira aqui no trono é mofo? É impressão minha ou a sua coroa está quebrada? Que olheiras são essas, minha rainha? É de cansaço esses ombros curvados? Levanta, minha querida. Abdica desse posto falido. Você não governa nem a si mesma. Afinal, quem te elegeu? Onde está a sua guarda real? Não ouço os gritos de vida longa, nem passos. Não tem ninguém lá fora, senhorinha. Foram todos embora. Você está sozinha.




  1. Raise my hands
  1. Paint my spirit gold
  1. And bow my head
  1. Keep my heart slow 
  1.                                      I will wait - Mumford and Sons

1 de fevereiro de 2013

Mal súbito




As vezes você sente uma tristeza súbita, como se de repente se desse conta de uma realidade assustadora. Você está por um fio. Você não tem mais direito de exigir nada do mundo. E já fez tanta coisa errada, já magoou pessoas que ama e que amavam você. Houve um tempo em que você brilhou, lembra? Mas agora parece estar embaçado. Você até enxerga embaçado. E aí se lembra da receita do oftalmologista esquecida há anos naquela gaveta, no meio das muitas quinquilharias que você guarda lá e dói pensar sobre. Naquela mesma gaveta também estão jogadas as tampas de garrafas de vodca que você abriu e não precisou fechar, as provas daquele vestibular que você não passou, a matrícula daquele curso que você abandonou, mesmo sendo seu sonho. E quantos outros sonhos não estão também jogados lá naquela mesma gaveta? Embolados nos emaranhados de erros egoístas. Quilômetros de ciúme e mágoa. Também tem algumas garrafas, cheias das lágrimas dela. Todas as visões das barbaridades que você aprontou também estão ali jogadas, em mini-clipes. Os ecos dos gritos que você deu. Ultimamente o peso daquela gaveta tem te incomodado, mas não é como se você pudesse se desfazer dela. É como se cada uma daquelas milhares de coisas estivessem tatuadas pelo seu corpo. E você sente tanta vergonha. Para pra pensar em como tudo começou a desabar. Nos muitos tropeços seguidos, sendo quase impossível se manter de pé, estável. Vê seu reflexo na tela do celular, as olheiras. Quem seria capaz de amar algo como você?