5 de abril de 2015

Canto da sereia

            


             Ela tem dedos leves que quando se entrelaçam no meu cabelo, lembram as mãos também leves -porém enrugadas - daquela vó que costuma fazer tranças. Ela tem mãos tão leves que quando roçam a minha pele imitam o roçar de milhares de cílios de milhares de anjos. Ela tem o cheiro de uma manhã ensolarada de domingo e fala num tom de voz tão manso e apaixonante quanto aquelas músicas daquela banda que costumava ser sua favorita, e não há nada que ela pudesse me pedir com aquela voz que eu não fizesse. Ela se move lenta e ritmada como a maré quando tá enchendo e puxa a gente pro fundo. E se a gente não nada rápido de volta pra beirada, se afoga. Eu me afoguei. E nem me debati, só deixei ela ir me puxando pro fundo do mundo dela. E não nadei contra, porque eu queria mesmo que ela me levasse, talvez porque se afogar no cheiro dos cabelos dela me fizesse esquecer que eu tava afundando. Ela é como aquele peixe que vive no mais profundo do oceano e encanta suas vítimas com uma luz esperançosa, e de uma só vez os engole. E os devora. O devorador de almas. E ela me devorava. E ela me virava do avesso e de volta. Mas nessas horas ela me sorria de um jeito que me fazia sentir como se tivesse ganhado na loteria, e depois ela desviava os olhos e eu me sentia como se tivesse perdido o bilhete. Como se tivesse perdido ela. E aconteceu um dia de uma corrente de ar dos trópicos criar uma tempestade bem em cima de nós. E as suas águas ficaram revoltas e não mais ritmadas. E eu submergi. E eu sentia meus pulmões inundarem num último esforço em direção à superfície, a qual nunca consegui alcançar. E aí cessei a luta. Submergi até me misturar com a areia no fundo. Caí entre duzias de arcas cheias dum tesouro que se mantinha secreto em suas profundezas, cuja existência e conteúdo ninguém jamais descobriria. 


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