4 de abril de 2014

Don't be afraid

Quando ela abraçava as pernas e se encolhia naquela posição fetal, eu não diria que ela tinha mais de cinco anos. Mas o seu sofrimento era de gente velha, como se tudo que passara tivesse gasto suas articulações, enfraquecido seus ossos, embranquecido seus cabelos. E ali encolhida ela gritava que estava cansada, que era demasiada a dor, o esforço. E em seguida, ela ficava dezenas de minutos em silêncio, encarando a parede branca. Às vezes se encolhia mais ainda, como se sentisse um frio intenso, e se balançava e murmurava coisas ininteligíveis. E n’outro segundo, sem aviso, gritava de novo e soluçava e dizia que estava enlouquecendo, tinha certeza. Não tenha medo, menina – eu queria lhe dizer. Ela engasgava com as palavras que saíam disparadas dos seus lábios, como projéteis saindo incessantes de uma metralhadora. E me atingiam aquelas balas. E perfuravam e agrediam e faziam enormes buracos nas minhas asas. E ela se abraçava cada vez mais forte, cada vez mais in. Mais um pouco e provavelmente viraria do avesso. Eu quero ir, me deixe ir! - ela gritava. E gritava assim, como quem grita numa sala inundada de conversas querendo se fazer ouvir. E eu tentava dizer que a escutava, mas ela me olhava como se não ouvisse, como se não entendesse, como se eu falasse em enoquiano. Às vezes ela fechava os olhos e ficava tão imóvel que qualquer um diria que estava morta. Eu temia que de fato ela estivesse. E por um momento eu fazia menção de tocá-la, mas ela abria os olhos e se encolhia assustada, distanciando do meu gesto como se adivinhasse, como se tivesse visto um segundo antes através das pálpebras. Então começava a sussurrar num descompasso uma música que lembrara, e ia recitando os versos como um mantra. Eu a encarava, parado ali, me sentindo um passarinho miúdo que caíra do ninho, tentando não me perder nas suas nítidas olheiras escuras, herança de noites em claro. Não havia mais nada ser feito, sabia o que viria a seguir. Não tenha medo, menina. – Eu disse outra vez. Ela não tinha.


Don't be afraid, you're already dead.

28 de fevereiro de 2014

Dois dias

            Sobra tanta dor. Sinto tanta vontade de gritar, tem muita coisa que eu não entendo e isso me dá uma sensação claustrofóbica. Tem dias que parecem durar séculos. Tem momentos que parecem ter acontecido há séculos. Sabe quando você era criança e, de repente, a energia acabava e tudo ficava completamente escuro? Sabe a sensação de tatear ao alcance de algo que te fizesse sentir seguro? E por alguns segundos você não se lembra como é a casa que você morou tantos anos, você não lembra a disposição dos móveis na sala. Você não lembra como chegar até o quarto da sua mãe, você não sabe como seguir o som da voz dela. Você fica apenas paralisado por alguns minutos, tentando não pensar nas coisas horrendas que poderiam te agarrar ali no escuro e ninguém perceberia, estreitando os olhos até que eles se acostumem à escuridão, mas eles nunca se acostumam. Eu nunca me acostumei. As vezes esse blackout acontece aqui, na minha cabeça. E é familiar a terrível sensação de tatear no escuro em busca de pensamentos seguros, tentando ouvir a voz que me guiaria até a caixa de fósforos mais próxima. É a mesma sensação de não reconhecer o lugar onde morou a vida toda. Não reconhecer as quinas e degraus da própria mente. Nunca soube como seria enlouquecer de verdade. Nunca parei realmente pra pensar onde estaria o limite da sanidade. Tenho esbarrado nele as vezes. Tem dias que parece que eu não vou aguentar. E eu ponho minhas mãos geladas em volta dos olhos, ordeno a mim mesma que pare de chorar. Pare de chorar. Como chegar até aquele pensamento seguro, nessa escuridão claustrofóbica? Como não esbarrar nas arestas dolorosas ao tatear até a saída? Como faz pra parar de doer? Como parar de doer? Por que tanta dor?